31.12.09

Direitos Animais: Um Novo Paradigma na Educação



29 de dezembro de 2009
Durante séculos a humanidade vem mantendo uma relação de dominação e exploração sobre os animais não-humanos. Porém, nas últimas décadas o massacre tem tomado proporções colossais para saciar a fome por lucro do sistema capitalista. São bilhões de animais assassinados por ano.
Partindo de um olhar sociológico e filosófico da educação pude constatar que essa relação naturalizadora da exploração dos animais não-humanos nos é passada principalmente pela família e pela escola.
Dois fatos são facilmente constatados:
1) Os jovens são herdeiros de um capital cultural familiar especista,
2) A escola é reprodutora de um Habitus naturalizador da exploração animal intensificando o capital cultural familiar especista.
Dessa constatação, duas questões se colocam:
1) Como é possível a quase totalidade da população não parar por um instante para refletir sobre esse biocidio diário em que ela está mergulhada?
2) Teria os Direitos Animais força pedagógica para reverter esse processo de banalização do mal e coisificação da vida?
Para refletir sobre a primeira questão, vou começar com alguns dados sobre a personalidade do tenente-coronel da SS e também conhecido como executor-chefe do Terceiro Reich, Adolf Eichmann, relatado pela pensadora política Hannah Arendt.
Não pretendo fazer aqui a conhecida analogia do holocausto promovido pelo regime nazista com o holocausto diário vivido pelos animais não-humanos. A questão que quero destacar é: Eichmann era um homem “normal”. “Foi o que seis psiquiatras atestaram sobre ele. Um deles espantou-se como seu comportamento com a família, amigos, irmãos era, não somente “normal” mas também “desejável”. E o pastor que o visitava na prisão relatava que ele era “um homem com muitas ideias positivas”’.(Souki,p.82)
Arendt nos leva a reconhecer em Eichmann “um homem banal, sem grandes motivações ideológicas nem engajamento político, apenas um homem comum. Mas, como isso pode ser possível? Como pode um homem comum ser responsável pelo massacre de milhões de pessoas?” (Souki,p.85)
Segundo Nádia Souki,
“Hannah Arendt não foi quem tirou o caráter demoníaco de Eichmann, mas ele próprio, e com tal obstinação, que a situação chegou ao limite da mais pura comicidade. Ela leu o interrogatório de 3.600 páginas e diz que, de sua parte, ficou efetivamente convencida de que ele era um palhaço, e mais, que não saberia dizer quantas vezes ela riu, riu às gargalhadas. Não havia nele nenhuma grandeza satânica, mas simplesmente uma horrorosa e burguesa banalidade”. ( Souki,p.87-88)
Eichmann simbolizava o melhor exemplo de um assassino de massa, sem vacilar na função de um perfeito pai de família. Vaidoso, exibicionista e com um bom repertório de frases clichês.
“Era impressionante o apego de Eichmann à educação e às regras de bom comportamento, mostrando vergonha e constrangimento face á lembrança de pequenos deslizes sociais cometidos no seu passado, o que é um dado inteiramente contraditório” (Souki,p.89) com sua função de tornar a ‘solução final’, normal.
Eichmann era a representação viva da banalidade do mal, da inconsciência, do afastamento da realidade e da obediência. Para Arendt, “ele simplesmente nunca compreendeu o que estava fazendo” (Arendt, 1999.p.310). Era a incapacidade de pensar, fortalecida pelo afastamento da realidade que gerava tal inconsciência. Para a pensadora, “ o problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais. (…) essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que (…) esse era um tipo novo de criminoso (…) que comete seus crimes em circunstancias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado” (Arendt, 1999.p.299).
Alguns anos depois de assistir o julgamento, a pensadora faz o seguinte comentário na obra A Vida do Espírito:
“ Os atos eram monstruosos, mas o agente – ao menos aquele que estava agora em julgamento – era bastante comum, banal, e não demoníaco ou monstruoso. Nele não se encontrava sinal de firmes convicções ideológicas ou de motivações especificamente más, e a única característica notória que se podia perceber, tanto em seu comportamento anterior quanto durante o próprio julgamento e o sumario da culpa que o antecedeu, era algo de inteiramente negativo: não era estupidez, mas irreflexão” ( Arendt, 2008.p.18.).
Toda a ação banalizadora do mal é fundamentada na “ausência de pensamento”, na “superficialidade”, na “irreflexão”, ou seja, no “vazio de pensamento”.
Esses resumidos dados da personalidade de Eichmann são fundamentais para compreendermos como a quase totalidade da população pode ver como ‘normal e natural’ a escravidão, tortura e o extermínio de bilhões de animais anualmente.
Tudo começa em casa
É o ambiente familiar o local educativo por excelência. E é nesse ambiente que o jovem, desde o nascimento, presencia e aprende mimeticamente o exercício da ‘irreflexão’, da ‘ausência de pensamento’ passado pelos pais, seus primeiros e mais importantes educadores. Desde o nascimento o jovem é submetido ao convívio diário com atos violentos para com os animais não-humanos cometidos pelos pais e parentes. Atitudes violentas que vão do literal espancamento do cão em casa a ‘inocente’ ida ao açougue comprar um pedaço de um cadáver, um ser que outrora consciente de sua existência, agora não passa de peças em decomposição.
Desde muito cedo se ensina ao filho a se divertir com ursos andando de bicicleta, leões pulando entre círculos de fogo e macacos fazendo palhaçadas no picadeiro de um circo. Desde muito cedo se ensina ao filho ver animais ditos exóticos e selvagens enjaulados em zoológicos como vejo uma peça de roupa pela vitrine de uma loja. Durante toda a infância o jovem aprende que o descanso do pai no final de semana vai do churrasco à pesca. Durante toda sua infância o jovem viu que todas as receitas preparadas na cozinha de casa são compostas de todos os tipos de pedaços de animais mortos e de secreções extraídas das glândulas mamárias de outras espécies.
Não existe maneira mais eficiente de inculcar um habitus. Dia após dia o jovem é submetido a um conjunto de práticas que ideologicamente naturalizam o que é cultural. São os pais os primeiros responsáveis pela transmissão da tradição, da cultura e dos ‘bons costumes’. Uma tradição antropocêntrica, uma cultura especista e os bons costumes sacralizadores de toda expressão do mal. Ao crescer num ambiente familiar banalizador do mal, o jovem não pode herdar outra coisa senão o “vazio de pensamento”, a “irreflexão”, a “superficialidade” no trato com a vida, seja ela humana ou não-humana. Portanto, herda-se o direito de manter hábitos e tradições que não podem ser justificados do ponto de vista ético.
As seguintes frases representam essa herança:
• Na natureza os animais comem uns aos outros, portanto, posso comer também.
• Se não testar nos animais, vai testar em quem, nos humanos?
• Não há nada de errado com os zoológicos, os animais são bem tratados.
• Que absurdo castrar os animais, eles precisam ter suas crias.
• Deus criou os animais para nos servir, está na bíblia.
O Ambiente Escolar
Partindo do ambiente familiar entramos no ambiente escolar. A escola é o lugar onde a criança e o jovem terá contato com a produção científica, literária e filosófica da humanidade. É nesse ambiente antinatural por excelência, domesticador de corpos e mentes e reprodutor da tradição moral cristã burguesa, que a criança e o jovem terão reforçados o habitus especista transmitido em casa.
Da pré-escola onde uma pretensa inocente cantiga incita “atirar o pau no gato”; passando por um ensino fundamental que frisa sistematicamente uma divisão científica onde o homem colocou a si mesmo no topo de uma cadeia alimentar que na verdade ele reside na parte inferior, e que a historia da humanidade é fundamentada no homem como a medida de todas as coisas; e concluindo com um ensino médio onde a filosofia passada ao aluno é aquela que se orgulha de ser antropocêntrica; a história é a do homem, branco e burguês; a geografia é a que ignora a origem alimentar dos impactos sócio-ambientais; a biologia é a apologista da experimentação animal e da visão de que tudo que não é humano é um recurso para beneficio humano; a química é a naturalizadora dos impactos ecossistêmicos pela industrialização, já que esse processo é facilitador da vida humana em sociedade.
É na escola que o estudante terá a comprovação científica, literária e filosófica do que aprendeu em casa. A escola não é só reprodutora das desigualdades sócias como bem apresentou o sociólogo Pierre Bourdieu, ela é reprodutora (e se orgulha disso) da milenar tradição moral especista e apologista da dominação humana sobre a natureza. Todas as disciplinas escolares, sem exceção, reproduzem a visão especista e capitalista que denomina todas as formas de vida não-humana como produto, coisa, mercadoria e recurso.
Se em casa a criança é aterrorizada pela mãe que diz sistematicamente que se ela não comer o ‘bife’ e não tomar o copo de ‘leite’ ela não ficará forte como o super-herói, na escola a comprovação de tal ideia vem da aula de ciências onde a criança aprende que o ‘bife’ é a mais importante fonte de proteína e que o ‘leite’ é a única fonte de cálcio e que sem eles nosso corpo está condenado à morte. Alem do bombardeio das disciplinas, todas representantes da visão antropocêntrica, a criança e o jovem são agraciados no intervalo das aulas com uma cantina regada totalmente de produtos industrializados testados em animais, refrigerantes, açucares e salgados fritos compostos de todos os tipos de animais mortos.
A escola ainda não é o lugar onde se produz conhecimento novo como muitos acreditam, é um local onde se reproduz um saber estabelecido por poucos para a manutenção da exploração de muitos, humanos e não-humanos. Portanto, se uma geração após outra, é sistematicamente formada em casa e na escola por uma tradição coisificadora da vida, fica fácil entender porque é tão difícil o exercício da reflexão ética. Temos um sistema de ensino irreflexivo, superficial e vazio de pensamento.
Um novo Paradigma
Dentro desse quadro nada favorável aos não-humanos, teria os Direitos Animais força pedagógica para reverter tal situação?
Através do trabalho pioneiro de introdução dos Direitos Animais no Brasil à quase duas décadas pela eticista Sônia Felipe no campo da filosofia política; no campo da ciência jurídica com Laerte Levai, Heron Santana, Daniel Braga Lourenço, Edna Cardoso entre outros; no campo das ciências biológicas anti-experimentação animal com Sergio Greif e Thales Trez e no campo da nutrição com George Guimarães, podemos perceber que nos últimos anos temos um crescimento no número de universitários de uma grande gama de cursos participando de grupos de estudos de direito animal.
É na formação de uma nova geração de advogados abolicionistas que teremos a efetivação do reconhecimento dos animais não-humanos como sujeitos de direito. E esse trabalho já está sendo feito em algumas faculdades de Direito no Brasil.
Se, somente a partir de uma nova geração de biólogos anti-vivisseccionistas, veganos e biocêntricos teremos a mudança do paradigma cientifico cartesiano para uma ciência que de fato respeita a vida, podemos nos animar, pois já temos alguns biólogos engajados na introdução nas escolas de nível fundamental e médio de uma visão biocêntrica rompendo com o padrão moral tradicional.
Também é perceptível, o lento, mas animador crescimento no número de estudantes de Gastronomia e Nutrição adeptos do vegetarianismo e do veganismo. É através desses novos profissionais que a população terá o respaldo ético da possibilidade de se alimentar bem sem provocar o extermínio de bilhões de animais e consequentemente de ecossistemas inteiros. No atual momento dos Direitos Animais no Brasil, somente a Gastronomia e a Nutrição vegana podem fazer frente à falaciosa propaganda ideológica das indústrias da carne e das de laticínio e não menos de nossa medicina biocida dependente econômica e quimicamente dos fármacos.
A cada ano, mais jovens universitários, especialmente das humanidades e das biológicas, ousam não cultuar os deuses cadavéricos cultuados pelos seus mestres.
Os Direitos Animais trazem para o campo educativo a necessidade urgente da abolição de um ensino pautado na incoerência lógica, moral e cientifica da tradição antropocêntrico-especista que somos herdeiros. A força pedagógica dos Direitos Animais já é perceptível. A cada ano, novos adeptos se aglutinam a esse novo paradigma; das Letras à Gastronomia, da Filosofia à Bioquímica, da Física Quântica à Geopolítica. Serão esses novos profissionais defensores dos Direitos Animais que darão continuidade aos trabalhos dos pioneiros propagadores da necessidade urgente da expansão do círculo da moralidade, ou seja, da inclusão dos animais não-humanos e dos ecossistemas naturais.
Dentro dos Direitos Animais não há espaço para a “irreflexão”, a “superficialidade” e para o “vazio de pensamento”.
Portanto, uma educação fundamentada nos Direitos Animais não permitirá que o capital cultural especista seja reproduzido, que as crianças e jovens cresçam tendo como natural à banalização do mal e a coisificação da vida. Pois, se concordamos com a defesa que o professor Francione faz do veganismo como fundamento moral dos Direitos Animais, podemos concluir que é a educação vegana que fará a diferença. Esse novo paradigma educacional não permite que a violência institucionalizada, a crueldade consentida com os animais humanos e não-humanos em estado de vulnerabilidade e a banalidade do mal sejam mimeticamente transmitidas às novas gerações.
Eu, pessoalmente tenho 6 horas por mês com os alunos da primeira série e 3:20 horas com os alunos da segunda e terceira série do ensino médio. A cada dia acredito mais no poder pedagógico dos Direitos Animais, pois mesmo com tão pouco tempo com os jovens, consigo através dos argumentos éticos e extremamente coerentes desse novo campo da Ética Prática contemporânea; quebrar, desmontar, aniquilar toda a costumeira prática da “superficialidade”, da “irreflexão” e do “vazio de pensamento” passada pela família e pela escola como natural.
Esse é o ponto, se novos professores, de todas as disciplinas, se engajarem no ativismo dos Direitos Animais, numa educação vegana de base, pouco importa o tempo que eles têm para ensinar. Esse posicionamento ético pode impedir o nascimento e a reprodução de novos Eichmanns.

Referências
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Filmografia
A Solução Final (Eichmann, Inglaterra, 2007, 100 min). Direção: Robert Young.
OBS* Este artigo foi apresentado no 3º Seminário Direitos Animais: Teoria e Prática nos dias 01 e 02 de dezembro de 2009, promovido pelo LEI – USP.

Leon Denis, professor de Filosofia da rede estadual de ensino do Estado de São Paulo, co-autor do projeto Mens sana in corpore sano, pioneiro no ensino de Direito Animal e Veganismo em escolas públicas no Brasil.

Fonte: http://www.anda.jor.br/?p=38662

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