O realizador Nuno Costa, o etólogo Manuel dos Santos, o psicólogo Vítor Rodrigues, a especialista em Património Margarida Ruas e o investigador de História e Cultura Pedro Teixeira da Mota em diálogo, após a ante-estreia do documentário, sobre o touro, as touradas, aficionados e não aficionados, violência e amor, e quais as melhores e mais evolutivas soluções.
1ª parte
http://www.youtube.com/watch?v=0BJbNWzahr0&feature=share&list=UL0BJbNWzahr0
2ª parte
http://www.youtube.com/watch?v=xwHO4fCWiEo&feature=share&list=ULxwHO4fCWiEo
3ª parte
http://www.youtube.com/watch?v=eyAPtndlvGI&feature=share&list=ULeyAPtndlvGI
4ª parte
http://www.youtube.com/watch?v=mmHOX4obHN8&feature=share&list=ULmmHOX4obHN8
Breve reflexão sobre a tauromaquia, a propósito de “Um Documentário Bestial” de Nuno Costa,
A tauromaquia, o combate do homem contra o touro, tem a sua origem na ritualização de intemporais mitos dualistas acerca do combate originário entre a luz e as trevas, o bem e o mal, o puro e o impuro, para que o cosmos vença o caos e a ordem predomine sobre a desordem. Estes mitos dualistas acerca do combate entre a luz e as trevas, o homem e o animal, expressam na verdade o sentimento humano, presente em todos nós, de uma divisão e um combate interno, entre a luz da consciência, da razão e da ética e as trevas da irracionalidade, dos instintos mais básicos e das emoções destrutivas.
Num ciclo de civilização antropocêntrica como o nosso, o homem foi identificado com a polaridade positiva e o animal com a negativa, sendo muitas vezes convertido num bode expiatório da violência, do mal-estar psicológico-existencial e dos conflitos e tensões resultantes da repressão dos mais irracionais impulsos e instintos humanos em prol da vida em sociedade. Projectar a necessidade de luta e triunfo da luz sobre as trevas interiores, do melhor sobre o pior de nós, num combate exterior com um animal, como se humilhá-lo, torturá-lo e vencê-lo, pela dor e pela morte na arena ou no matadouro, tornasse alguém melhor, é uma manifestação grosseira de ignorância e do esquecimento da dimensão simbólica e psicológica daqueles mitos arcaicos.
A esta luz, e num tempo onde o homem já não necessita sequer de se treinar para a guerra lutando contra animais, a tauromaquia revela-se um espectáculo de pura agressão bárbara e gratuita contra um ser senciente e pacífico, forçado a sofrer terrivelmente num confronto que não deseja. Na tauromaquia há uma dissimulação do mal da violência e do sofrimento, anestesiando-se a natural tendência do homem, presente já nos mamíferos e em inúmeros outros animais não-humanos, para a empatia e para se colocar no lugar do outro: em primeiro lugar, pela convicção ignorante, entranhada desde há milénios no subconsciente humano, de que o homem é o “bom” e o animal o “mau”; em segundo lugar, pela estética do espectáculo, com as luzes, as cores (incluindo o vermelho vivo do sangue), a música, as vestes e os movimentos rituais que prendem a atenção, excitam os sentidos e adormecem a consciência crítica; em terceiro lugar, pelo êxtase emocional de uma multidão a vibrar em uníssono, onde as pessoas esquecem o mal-estar psicológico-existencial, os problemas da vida e as razões da consciência nesses momentos fugazes de gratificante diluição numa festa social que proporciona a alegria da reunião de parentes e amigos, bem como da comunhão da comida e da bebida.
Para além daqueles que fazem da tauromaquia o seu modo de vida e estão directamente ligados aos interesses económicos da indústria tauromáquica, a maioria dos aficionados vê apenas nas corridas de touros a estética do espectáculo e o convívio social, que lhes confere um sentimento de identidade e de participação comunitária numa era de globalização e de fragmentação das relações humanas. É por isso que ganadeiros, cavaleiros, toureiros, forcados e aficionados não vêem nas corridas de touros senão isso e quase nunca o evidente sofrimento do animal, seja o cavalo ou o touro. Há um obscurecimento da percepção, que só vê o que está tradicionalmente programada, pelo meio familiar e pela pressão social, para ver, sendo cega para a presença do animal como um ser vivo e senciente, com interesses próprios que não permitem reduzi-lo a mero objecto e instrumento do prazer humano.
Mas o sofrimento dos animais, capazes como nós de sentir a dor e o prazer psicofisiológicos, é o que acima de tudo vêem os que lutam pela abolição da tauromaquia, pois esse sofrimento e a brutal transgressão da regra de ouro de toda a ética – o não fazer ao outro o que não desejamos que nos façam a nós – surgem em toda a sua injustificada e brutal nudez quando despidos dos véus da mítica superioridade humana, da tradição cultural, da beleza estética e da festa social. A tortura, a violação e o assassínio serão sempre tortura, violação e assassínio, e como tal inaceitáveis, por mais que nalgum lugar do mundo se convertam numa tradição cultural apreciada por alguns e numa festa social encenada com requintes estéticos de luz, cor, som e movimento.
A consideração dos interesses dos animais como um critério ético objectivo e inultrapassável é o que impede de reduzir a questão da legitimidade da tauromaquia a uma questão de liberdade de opção e de gosto humano, em que seria igualmente aceitável gostar ou não, como em geral argumentam os aficionados. Esta é decerto uma perspectiva nova e desafiante, para quem foi educado e pressionado familiar e socialmente para ver os animais como existindo naturalmente para satisfazer todos os desejos humanos, mas com o devido tempo e abertura todo o aficionado pode chegar no mínimo a compreendê-la, tornando possível um diálogo hoje difícil. Acredito inclusivamente, com esta compreensão, e por virtude da inteligência e sensibilidade presentes em todos os homens, não ser impossível que, como já tem acontecido, alguns aficionados de hoje se convertam nos abolicionistas de amanhã.
Todavia, a abolição da tauromaquia, que lenta mas firmemente se desenha no horizonte da civilização, apenas exige o fim da presença dos animais, touros e cavalos, no espectáculo, e não o do próprio espectáculo. Tal como os touros bravos e os montados podem sobreviver ao fim da tauromaquia, convertendo-se em santuários da vida selvagem, reservas ecológicas e pólos de atracção turística, criando novos empregos, também o actual espectáculo, sem animais, se pode converter numa encenação não-violenta, mantendo toda a sua estética tradicional, enquanto expressão de uma dada identidade cultural, a exemplo do que aconteceu com muitas práticas semelhantes em todo o mundo, que hoje são apreciadas como artes lúdicas livres de dor, sangue e morte, como as antigas artes marciais do sabre japonês, o kendo, e da capoeira afro-brasileira. Livre de animais, o actual espectáculo continuará a ser uma festa e um foco de convívio e coesão social, mas deixará de ser a festa da violência e da dor que actualmente lesa os animais e indigna e envergonha a nossa consciência, ferindo o mais fundo da nossa sensibilidade humana à dor do outro, à aflição do próximo, humano ou não-humano.
Na impossibilidade de estar pessoalmente presente na ante-estreia deste filme onde tive a honra de participar, quero expressar os mais sinceros parabéns ao Nuno Costa e a toda a equipa que produziu este Documentário Bestial, que é também "bestial" pelo inestimável serviço público de, num país onde o Estado se demite desta tarefa, contribuir para uma reflexão aprofundada e alargada sobre questões onde se joga o sentido mais fundo da nossa humanidade e da nossa evolução social e cultural. Quero também aproveitar esta oportunidade para apelar a que todos continuemos a assinar e divulgar - com a intenção de proteger animais e homens, bem como de fazer avançar a civilização - a petição pela abolição das touradas e de todos os espectáculos com touros, da qual sou o primeiro subscritor e que já excedeu as 50 000 assinaturas: http://peticaopublica.com/PeticaoVer.aspx?pi=010BASTA
Bem hajam!
Paulo Borges, Presidente da Direcção Nacional do PAN
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