21.2.16
Artigo de opinião de Inês Real sobre a protecção dos animais de companhia em Portugal
QUINTA-FEIRA, 23 DE FEVEREIRO DE 2012
"Quando a bioética espraia as categorias da ética para a consideração do impacto que, na nossa existência, na nossa felicidade, na assunção e cumprimento dos nossos deveres, na sedimentação da nossa personalidade, têm aspectos involuntários do nosso suporte vital - a nossa mortalidade, a nossa morbilidade, a nossa vulnerabilidade, a nossa dependência, a nossa animalidade - , não está ela já a abrir caminho a um "descentramento" da ética relativamente à consideração isoladora (e exaltadora) da condição humana? Não está ela a legitimar a consideração niveladora de interesses e problemas exclusivamente humanos (ou, ao menos, apresentados como exclusivamente humanos, seja lá isso o que for) com interesses e problemas que conseguimos reconhecer em todos aqueles que, partilhando a sua existência terrena com a espécie humana, também manifestam nessa existência a sua mortalidade, a sua morbilidade, a sua vulnerabilidade, a sua dependência, a sua animalidade?"
- Fernando Araújo, A Hora dos Direitos dos Animais, Coimbra, Livraria Almedina, 2003, p.8.
Assistimos hoje a uma crescente preocupação e atenção da sociedade civil quanto à protecção dos direitos dos animais.
Na verdade, é do conhecimento geral que a participação dos animais de companhia no seio familiar e na nossa sociedade constitui uma contribuição cientificamente comprovada para a melhoria da qualidade de vida do ser humano, bem como benefícios a nível de saúde física e psíquica.
Contudo, sobretudo em momentos de maior crise económica e de valores sociais, o flagelo do abandono animal aumenta, sendo inúmeros os apelos e esforços desenvolvidos por particulares e associações de protecção animal, para a promoção da adopção de cães e gatos de companhia, bem como para que o Governo legisle por forma a promover e salvaguardar o bem-estar animal, nomeadamente pelo controlo da população animal, adoptando medidas de esterilização massiva e melhoria das condições dos centros oficiais de recolha.
A necessidade de controlo da população animal, surge também perante o reconhecimento de que a mesma, não controlada, constitui riscos reconhecidos para a higiene, a saúde e a segurança do homem e dos outros animais, diminuindo ainda a qualidade de vida e bem-estar dos próprios animais de companhia.
Há que ter ainda consciência de que o preocupante fenómeno do abandono de animais é um flagelo que deixou de ser sazonal e que se alarga dos canídeos e felinos aos animais de quinta, bem como aos animais ditos selvagens (cujos espécimes continuam a ser detidos ilegalmente pelo homem).
Tal fenómeno deve ser combatido por todos os meios legalmente conferidos às entidades competentes, porquanto, não só o abandono é um acto cruel e degradante, que em nada dignifica o próprio ser humano, como provoca ainda um imensurável sofrimento nos animais, ao nível físico e psíquico.
Nesse mesmo sentido, defendemos que a redução de animais errantes deve ser efectuada com o mínimo de sofrimento possível, sendo um dever do Estado o encorajamento da esterilização e a adopção de medidas mais eficazes e tendentes ao controlo populacional que respeitem o bem-estar animal.
O controlo de zoonoses e de animais errantes, passa necessariamente pela realização de campanhas de esterilização, cujo efeito a médio e longo prazo se traduz numa diminuição significativa da população de animais errantes.
Olhando para o panorama legislativo no âmbito do Direito Animal, verificamos que o mesmo se encontra bastante disperso, coexistindo vários diplomas que versam sobre as diferentes áreas (animais de companhia, regime jurídico dos animais potencialmente perigosos, registo, detenção e licenciamento, pecuária, alimentação, calçado, entretenimento entre outros exemplos).
No presente artigo de opinião, iremos debruçar-nos sobre a necessidade de alterar o regime jurídico dos animais de companhia, não só pelo especial papel que representam no seio familiar e na comunidade, como também pelo representação que têm no flagelo do abandono animal, sem prejuízo de futuras considerações que nos propomos reflectir sobre o direito animal em vigor no nosso pais.
Em 16 de Fevereiro de 1993 Portugal ratificou a Convenção Europeia para protecção dos Animais de Companhia, aberta à assinatura dos Estados Membros do Conselho da Europa em 13 de Novembro de 1987 (DL n.º 13/93, de 13 de Abril, a qual reconhece que “o homem tem uma obrigação moral de respeitar todas as criaturas vivas”, os “laços particulares existentes entre o homem e os animais de companhia” e a visível e crescente importância dos animais de companhia na sociedade.
Nos termos do n.º 2 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, “as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português”, o que quer dizer que as normas decorrentes da Convenção, que impõem o respeito pelo bem-estar animal, a proibição do abandono e dever especial de os Estados Membros salvaguardarem os direitos dos animais, vigoram directamente no nosso ordenamento jurídico, como se de uma lei interna se tratasse.
Para além da Convenção, também no âmbito do Protocolo Anexo ao Tratado de Amesterdão - o qual institui a Comunidade Europeia, foi definido um objectivo comum aos países da Comunidade Europeia, que é o de “garantir uma protecção reforçada e um maior respeito pelo bem-estar dos animais, enquanto seres dotados de sensibilidade”.
A Convenção Europeia para a protecção dos Animais de Companhia consagra dois princípios fundamentais para o bem-estar animal, estatuindo o dever de não causar inutilmente dor, sofrimento ou angústia a um animal de companhia e de não abandonar um animal de companhia (cfr. n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º).
Tal Convenção, impõe ainda aos Estados Membros a adopção de medidas de redução do número de animais errantes que contemplem métodos que não causem dor, sofrimento ou angústia, encorajando a redução da reprodução não planificada e estabelecendo regras para a captura, detenção e abate (cfr. artigo 12.º e 13.º).
Perante a ratificação de tal instrumento legislativo, os Estados membros comprometeram-se ainda a promover programas de informação e educação (cfr. artigo 14.º), o que lamentavelmente não tem sucedido, constituindo as entidades públicas que adoptam tais iniciativas uma excepção.
Estes principios são igualmente adoptados pela legislação interna, em particular pela Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro (Protecção dos Animais), que no seu artigo 1.º proíbe expressamente todas as violências injustificadas contra animais (que conduzam à sua morte, sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões) e o abandono.
A par da Lei de Protecção Animal, encontramos em vigor no nosso ordenamento jurídico o DL n.º 276/2001, de 17 de Outubro, que estabelece medidas complementares às disposições da Convenção Europeia para Protecção dos Animais de Companhia .
No âmbito de aplicação de tal decreto-lei, encontramos algumas normas de suma importância, como, p.e., a consagração de que nenhum animal deve ser detido como animal de companhia se não estiverem asseguradas as condições de detenção e alojamento, proibição de todas as violências contra animais - “actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento ou lesões a um animal” -, (cfr. artigo 7.º do DL n.º 276/2001, de 17 de Outubro).
Contudo, sem prejuízo dos princípios consagrados em tal diploma, a principal dificuldade com que nos deparamos quando se fala em assegurar o bem-estar animal, surge desde logo no âmbito de uma eficaz fiscalização, ainda que manifesta de uma falta de recursos técnicos e humanos, que permitam ao Estado a reposição do direito ao bem-estar animal, seja este físico ou psíquico, de acção ou por omissão, quando tal não é cumprido por parte do detentor, culminando na grande maioria das vezes em maus tratos e abandono impunes.
Por outro lado, as competências de fiscalização, inspecção e instrução de procedimento contra-ordenacional, encontram-se também elas dispersas pelas diferentes autoridades, DGV, DRA, aos médicos veterinários municipais, à Inspecção-Geral das Actividades Económicas, ao ICN, às câmaras municipais, designadamente à PM, à GNR (SEPNA), à PSP, o que dificulta a agilização de procedimentos e intervenção (cfr. artigo 66.º e ss do DL n.º 276/2001, de 17 de Dezembro.
A par da falta de cumprimento do dever de cuidado imposto aos detentores de animais de companhia, temos o problema da sobrepopulação animal e da falta de licenciamento/ condições de alojamento dos próprios centros de recolha oficial/ canis municipais.
Ora, estabeleceu o legislador que as condições dos alojamentos devem dispor aos animais o espaço adequado às suas necessidades fisiológicas e etológicas, de acordo com as normas de higiene e em respeito pelos factores ambientais, com sistemas de protecção, com adequada alimentação, abeberamento e cuidados de saúde (cfr. artigo 18.º e ss. e 39.º e ss. e respectivos Anexos, do DL n.º 276/2001, de 17 de Outubro).
Lamentavelmente os Centros de Recolha Oficial (CRO) ao nível nacional não respeitem, em regra, as condições legalmente impostas, infligindo aos animais um sofrimento físico e psíquico moralmente inaceitável.
Recentemente, foi colocada uma providência cautelar contra o Canil Municipal de Lisboa, a qual foi considerada procedente (Processo n.º 295/11.4BELSB que correu termos no Tribunal de Círculo Administrativo), porquanto, em suma, deu como provado que o CRO “manifestamente não tem as condições exigidas pela lei em vigor e aplicável”.
Pelo exposto, urge assim dar resposta aos desafios que a sociedade, o tempo e o legislador comunitário lançaram, de uma maior e melhor promoção do bem-estar animal, fiscalização, adopção de medidas de controlo populacional que contemplem a esterilização e uma maior adequação da lei à eminente sensibilidade e consciência social quanto à protecção dos animais de companhia.
Resta-nos concluir que, olhar para condição dos animais, é também olhar para condição, dignidade e elevação do ser humano, sob pena de incorrermos até numa “arrogância especista”.
Assim, o Partido pelos Animais e pela Natureza – PAN, lança o desafio ao Governo que, através da sua competência legislativa, eleve o estatuto jurídico dos animais sencientes, promovendo o respeito pelo seu bem-estar, nomeadamente através das seguintes iniciativas:
- Alteração do Estatuto Jurídico dos Animais sencientes no Código Civil, reconhecendo que os mesmos não são coisas e que podem ser objecto de relações jurídicas;
- Introdução na Constituição da República Portuguesa do dever do Estado Português salvaguardar o bem-estar animal, mediante Revisão Constitucional, que consagre na alínea e) do artigo 9.º esse mesmo dever;
- Criação de um programa de esterilização nacional dos animais errantes, como medida de controlo da sobrepopulação animal;
- Adopção de uma política de não abate dos animais errantes recolhidos nos centros de recolha oficiais, adoptando, nomeadamente, meios eficazes de controlo da reprodução, destinando-se a aplicação de eutanásia - «boa morte» - unicamente aos casos em que o animal não tenha qualquer recuperação clinicamente possível e sempre por decisão do médico-veterinário responsável;
- Alteração do actual papel do centros de recolha oficial, deixando este de ser focado essencialmente na garantia da saúde pública, para que passe a ter um papel de recuperação dos animais errantes com o fim de adopção (promoção de uma política de recuperação clínica, física e psicológica dos animais que se encontram à sua guarda);
– Determinar a obrigatoriedade de esterilização de todos os animais que se encontram à guarda dos centros de recolha oficial e não reclamados nos prazos legais;
– Criação de um programa nacional de formação dos responsáveis e funcionários dos centros de recolha oficial em ‘Bem Estar Animal’, proporcionando uma maior e melhor adequação das suas competências técnicas, garantindo os meios para a actualização anual da formação, nomeadamente a dos médico-veterinários municipais e que vise assegurar o cumprimento das normas de saúde e bem -estar animal;
— Melhoria das condições de alojamento dos centros de recolha oficial de meios, adequando as mesmas às necessidades, físicas, psíquicas e higieno-sanitárias, bem como, dotando-as de condições para a realização de tratamentos médico-veterinários, cumprindo as normas de saúde e bem-estar animal;
— Prever meios para que os centros de recolha oficiais possam realizar a esterilização dos animais errantes recolhidos, em especial dos não reclamados nos prazos legais;
– Reforço da fiscalização na área do bem-estar animal, nomeadamente dotando as entidades competentes de meios técnicos e humanos que permitam uma actuação mais eficaz;
— Promoção de campanhas de sensibilização pública e dos detentores de animais contra o abandono, assim como para a adopção responsável dos animais recolhidos nos centros de recolha oficial;
— Prever que os animais a cargo de associações de protecção dos animais ou de detentores em incapacidade económica possam aceder a tratamentos médico-veterinários, nomeadamente a prática de esterilização, a preços simbólicos, nos centros de recolha oficiais;
— Corrigir as falhas existentes ao nível dos sistemas de registo dos animais, como é o caso do SICAFE (Sistema de Identificação de Caninos e Felinos), e SIRA promover a unificação das várias bases de dados de identificação de cães e gatos e dando a possibilidade de registo automático nos centros médico-veterinários públicos e privados;
— Realização de programas RED (recolha, esterilização e devolução) em colónias de animais de rua estabilizadas e instituir o conceito de «cão ou gato comunitário» que garanta a protecção legal dos animais que são cuidados num espaço ou numa via pública limitada cuja guarda, detenção, alimentação e cuidados médico-veterinários são assegurados por uma parte de uma comunidade local de moradores devidamente identificada através de um dos seus membros no centros de recolha oficial da área de responsabilidade.
(Artigo de opinião de Inês Real, presidente do Conselho de Jurisdição Nacional do PAN e membro do grupo de trabalho sobre Animais do PAN).
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QUEM É INÊS REAL?
Inês Sousa Real é a Provedora Municipal dos Animais de Lisboa.
Licenciada em Direito e com um mestrado em Direito Animal, Inês Real é membro co-fundador e da Comissão Directiva da Jus Animalium, Associação de Direito Animal.
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