Os valores da festa
brava
(e um Fórum que foi declarado de reconhecido
interesse público)
In his biological writings, Aristotle (384–322
bc) repeatedly suggested that animals lived for their own sake, but his claim
in the Politics that nature made all animals for
the sake of humans was unfortunately destined to become his most influential
statement on the subject. (Encyclopaedia Britannica, Animal rights)
Em 1952 escrevia meu Pai, na introdução de pequeno
livrinho que então publicou, o seguinte: “Há na Sagrada Escritura dois
provérbios característicos pela sua aparente contradição. Um diz: não respondas
ao louco segundo a sua loucura, para não vires a ser semelhante a ele. O outro
aconselha: responde ao louco segundo a sua loucura, para que ele não imagine
que é sábio. Perante a nota de reportagem “Festa brava oferece “escola de vida”
– presente no Diário Insular, na sua edição de 28/Jan. do ano corrente, onde se
apresentam algumas conclusões do III Fórum Mundial da Cultura Taurina, durante
algum tempo, vacilando entre os dois conselhos, hesitei em “responder”, isto é,
em pronunciar-me sobre o assunto…mas tal como em tempos decidiu meu Pai,
decidi-me hoje pela resposta.
As referidas conclusões, que foram lidas por um
conhecido autor de obras sobre a “corrida” e defensor da cultura tauromáquica,
o filósofo e professor Francis Wolff, apontam constantemente para os “valores”
ligados à tauromaquia, não os identificando ou concretizando porém (e por que
não? Pensar-se-á, acaso, que todos os “valores” são desejáveis e moralmente
defensáveis?) enquanto parecem reflectir o sentimento dos participantes, que
será de perseguição perpetrada pelos ferozes anti-taurinos - que surgem em toda
a nota como os maus da fita.
Anti taurina ou, mais bem dizendo, anti-tauromaquia
como me assumo, e isto desde que aos seis ou sete anos de idade assisti a uma
tourada à corda e acto contínuo me coloquei, mentalmente, ao lado do animal desnorteado
e confuso - que claramente vi como o mais fraco - jamais persegui, insultei ou
injuriei quem quer que fosse por pensar de modo diverso daquele que reconheço
como o meu, muito embora possa, evidentemente, lamentar que se torne ainda
necessário a alguns, no momento evolutivo em que a espécie se encontra,
demonstrar em praça pública que são mais espertos do que um touro – o que é
forçosamente sempre verdade, mesmo para o mais bronco exemplar de homo sapiens
sapiens que possamos imaginar. Porque dos valores da cultura taurina, tantas
vezes referidos, nomeadamente nestas conclusões, mas raramente identificados
pelos seus defensores, imagino eu que o principal será a modalidade de coragem
que leva um humano de físico comparativamente insignificante a se colocar
perante um bicho irracional, mas dotado de poderosos músculos - coragem essa
que não me parece lá muito superior, porém, à de algum desocupado que finte uma
locomotiva que não consegue, por si mesma, sair dos carris onde foi colocada.
Claro que pode acontecer um acidente, uma escorregadela, um tropeção, e num
acaso, ser colhido o homem, que nesta insensatez perde a sua irrepetível vida,
na tentativa de demonstrar mais uma vez o que toda a gente já sabe. Mas, em
princípio, é sabido que o touro procurará a capa que esvoaça, tal como é sabido
que a locomotiva não sairá dos carris – e com um bocado de sorte ninguém
tropeçará.
Bastante maior coragem
revela, quanto a mim, o boxeur que enfrenta um seu semelhante em força física,
habilidade e inteligência, muito embora o fomento do pugilismo também não
esteja nos meus planos culturais para a terra onde nasci.
Aprecio a coragem e a
destreza físicas, mas mais defendo a promoção de um outro tipo da mesma, que
passe muito menos pelos músculos e muito mais pela força de carácter, que tenha
pouco de esperteza saloia e muito de honesto aprumo, que encare o mais fraco
como destinatário dos cuidados e da sabedoria do mais forte – e nunca como
objecto de diversão ou de libertação de instintos sádicos, de que é alvo fácil.
No confronto homem-touro, este é o mais fraco, e não ao contrário – assim o vi
naquela tourada à corda de há muitos anos, assim o vejo hoje.
Como se pode afirmar que, e transcrevo: “Contra o
doutrinamento do politicamente correcto a tauromaquia tem-se como uma
experiência de beleza, paixão, inteligência, que deveria ganhar espaço como
modelo de comportamento, para uma sociedade que vai perdendo as suas
referências essenciais” no contexto de um evento que foi, se a memória me não
falha, subsidiado por dinheiros públicos - que são administrados e atribuídos
por políticos - em pelo menos 60000 euros? Por outro lado, serão porventura,
para os participantes deste Fórum, referências essenciais da nossa sociedade o
conseguirmos divertimento (e proventos económicos, talvez um outro dos valores
que não são explicitados) à custa do sofrimento e da confusão de animais
irracionais? Se assim for, pois é bom que se percam; eu advogo, e outros como
eu advogarão, o surgimento de uma sociedade em que as referências passem pela
compaixão, que não pelo sadismo; pela elevação artística, que não pelo
divertimento boçal; pela sabedoria, numa palavra, que nos levará a compreender
o nosso lugar no planeta como guardiães atentos, que não como usuários
aproveitadores, desinteressados do dia de amanhã que de qualquer modo não nos
atingirá - e já agora aí vai outra expressão que está muito em moda, como está
esta dos “valores” - dado que uma das minhas referências para a sociedade que
almejo é, precisamente, o desenvolvimento… sustentável.
Muitas vezes tenho constatado com tristeza que,
neste meio onde vivemos, parece não ser necessário compreendermos a fundo o
significado das palavras para as repetirmos de modo considerado oportuno.
Mas voltando à questão, todos estamos no mesmo barco,
homens, touros e árvores; mas só uma das espécies viventes apresenta o apodo
duplo de sapiens, que, muito embora se trate de uma auto-denominação, deveria
implicar forte responsabilização do mais sábio, logo mais forte, pelos mais
fracos.
É verdade que os participantes do Fórum em questão,
mai-lo seu porta voz e aficionados em geral, têm em pleno a liberdade de não
concordar com a minha postura, nestas linhas expressa, de apreciar uma
actividade que outros reputam atávica, desprovida de dignidade e cruel, e até
de a praticar, pelo menos enquanto as leis do nosso país o permitirem. Não
podem é supor que acreditamos que o rei traz vestido um esplêndido fato quando
afinal vem o mais nu que é possível, e isto por muito filósofo (e especialista
em Aristóteles), que seja o porta voz das conclusões… Aristóteles, que aliás e
por não dizer sempre a mesma coisa, acabou por ficar com as famas de entender a
existência dos animais para exclusivo proveito dos seres humanos - quando
afinal, se o disse, também disse o contrário. Mas que trapalhão.
E, para terminar, que me seja permitido dizer que a
bela ilha Terceira, tão cheia de (outras) tradições interessantes e de grande
importância em termos culturais (e bastará lembrar aqui o seu valiosíssimo
corpo folclórico musical, que me é tão próximo e não cesso de admirar) não
precisa de nada disto para se confirmar como um destino turístico de primeira
água, que manifestações desta natureza só poderão, infelizmente, deslustrar.
Respondi! e disse.
Maria Fraga
Fonte: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10200580034982820&set=a.1530868091126.61304.1817484358&type=1&theater