30.12.12

Terceirense Contra as Touradas





Carta ao sr. Governador Civil, com um pedido particular
Vila Franca de Xira, Outubro de 1925
Exmo. Sr.
Eu sei que V. Ex.ª tem muito que fazer e muito em que pensar. O cargo de Governador Civil de Lisboa é dos que dão água pela barba. É certo que as coisas da política e das eleições se aldrabam pelo Terreiro do Paço; que a ordem pública é com a Polícia e o Carmo - lá as armam lá as desarmam; que dos abastecimentos se encarrega aquela bela rapaziada dos fiscais; e que os passaportes correm pela repartição respectiva; mas tem Vª Ex.ª esse calvário da inspecção dos teatros e a tragédia de dar esmolas com o dinheiro das casas de batota. Só nisto das esmolas V. Ex.ª ganha- queixa do peito! Distraia porém V. Ex.ª alguns momentos desse seu Governo e escute-me.
Há dias realizou-se nesta vila uma tourada, em que foram mortos dois touros. Diziam que era proibido matar. Tolices! O representante da autoridade, representante portanto de Vª Ex.ª, do Dr. Sr. Domingos Pereira e do Sr. Teixeira Gomes, atendeu os justos pedidos da população, que gritava: que se mate, que se mate! E voltou o polegar para baixo…E dois touros rolaram na arena sangrenta, como outrora os cristãos no Coliseu dos Recreios de Nero…
Ouça Vª Ex.ª a descrição do tipo de um dos touros, feita cá por um “colega”: - “Outro bicho! AH! Gente de bom gosto! Que lindo bicho! É um jabonero, novito, mas lindo, tipo de escultura, cabeça nervosa e hastes curtas e aguçadas”.
Repare Vª Ex.ª agora a cena:
“Então o de Triana (matador) aponta e a espada, tocando o osso descaída, salta ao chão. O bicho pensa: ainda não foi desta, e dá duas voltas feliz. Mas Angelito tapa-o com o pano vermelho, perfila-se de lado, aponta e a espada vai, com destino ao coração, até ao meio, ferido de morte, o jabonero não ajoelha. Fica ao centro a olhar o sol, que venceu as nuvens e enche a praça.
Respiração suspensa. Capotes, mais capotes, e o lindo bicho encosta-se às tábuas, à espera, à espera…
Enfim, o de Triana toma outra espada, fina – como uma sentença de morte – e descabella, com felicidade.
Lindo touro! Caiu redondo… Emoção. Voltas. Música. Palmas. Lenços.”
E o cronista conta por último, que depois da corrida o jabonero foi passeado, morto, de trem, pelas ruas desta vila “vencido e orgulhoso”.
A quem ficamos devendo todo este espectáculo extraordinariamente emocionante? Ora a quem… Ao Malta. Vª Exª não conhece?! Nem V.Exª conhece outra coisa! O Malta! O Maltazinho… Um companheirão, um “cara direita” e um “bom republicano!”.

Pois aqui tem Vª Ex.ª porque o venho incomodar. O povo quer recompensar Malta. Pensou-se em oferecer-lhe um banquete na Lezíria, em elegê-lo deputado, em nomeá-lo revolucionário civil. A modéstia de Malta obstinadamente recusa. Há uma coisa porém, a que nenhum Malta resiste… Vª Ex.ª. já me percebeu… É aquilo que Vossas Ex. as todos têm, que, numa palavra, a Malta toda possui!...
É a medalhinha, a venera ou lá o que é e que pelo nome não perca.
A Torre e Espada estava a calhar. O valor, a lealdade e o mérito ali! que nem um homem. Se não puder ser porém – o Cristo. O Cristo, Sr. Governador, com a sua roseta vermelha, até estava a dizer… E mesmo o Santiago, porque não? O mérito científico, artístico e literário, demonstram-se ali. Aquilo tem muita ciência e muita arte e dá lugar a muita boa literatura, como Vª Exª pode verificar pela amostra acima.
Ao menos Sr. Governador Civil se de todo em todo não puder ser qualquer das outras – a Filantropia e a Generosidade. Pois não há filantropia e generosidade em poupar trabalho aos magarefes, dando ao mesmo tempo uma lição de disciplina democrática, de obediência à vontade popular?
Porque foi o Povo, o Povo soberano quem exigiu a morte do touro. Foi o Povo, foi o “Sol” quem gritou: que se mate, que se mate! E a autoridade, verdadeiramente cônscia dos seus deveres – obedeceu. Então porque merece ser premiada a autoridade? Por ter sabido romper com uma ignominiosa tradição secular. É certo que Vª Ex.ª e o Sr. Presidente da República já tinham autorizado os rojões mas, que é isso comparado com aquele estranho ritual de apontar a espada, que toca o osso “descaída” e salta ao chão; com aquela volúpia de “tapar” o touro com o pano vermelho, “perfilar-se” uma pessoa de lado e apontar a espada que vai, com destino ao coração, até ao meio, com aquele delírio de tomar outra espada, fina como uma sentença de morte e de descabellar com felicidade?
Note Vª Exª – com felicidade; e depois passear pelas ruas o touro de tipóia, morto, “vencido e orgulhoso”.
É por estas e por outras que se verifica, Sr. Governador, que esta República é aquela que por nós sonhávamos, nós que não pensamos como esse reaccionário Boto Machado, que apresentou no Parlamento um projecto de lei abolindo as touradas, nós, os “aficionados”, recebemos dinheiro dos “apoderados”, para os touros serem “estoqueados”.
Do que o povo precisa é disto, Sr. Governador, destas lições de valentia e de coragem moral. Dêem-lhe touros de morte e autoridades democráticas, dêem-lhes um pouco de sangue, mesmo de boi, e ele regressará galhardo aos tempos heróicos das Conquistas, das Navegações e dos Descobrimentos.

Vª. Ex.ª, pela sua rica saúde, não vá supor que estou falando por ironia. Isto é a pura da verdade. Temos exemplos de casos bem recentes. Olhe Vª Exª o 19 de Outubro… Vª Exª ainda não tinha autorizado os touros-de-morte, mas só com o cheiro do que ia por Espanha, fez-se aí uma “faena”linda.
Vª Ex.ª lembra-se do homem que matou António Granjo? Era um clarim ou corneteiro da G.N.R. (nunca se apurou bem se era uma coisa ou outra, só se sabe que era da música), que ao sair do Arsenal com o sabre, que embebera no corpo desse politico, a pingar sangue, rugia – já o pinchei, já o pinchei!
Vê Vª Ex.ª! ... Termos técnicos. Linguagem tauromáquica.
Amanhã quando suceder o mesmo ao Sr. Dr. Domingos Pereira ou a Vª Ex.ª (longe vá o agouro!), outro clarim ou outro corneteiro – outra da música- rugirá – já o descabellei, já o descabellei, com felicidade! ...
Não empalideça Vª Exª., que diabo! Somos homens! E os homens são para as ocasiões! Mas é a lógica. Com ensaios como o que o Malta regeu, “eles”, que já têm queda para a música, organizam aí um orfeão de primeiríssima ordem.
E olhe Vª Ex.ª que eu não vejo isto pelo “lado do boi”, vejo pelo lado “deles”, cá pelo meu lado. Conheço -“os”; conhecemo-nos. Quem finge desconhecê -“los”, que não se queixe depois.
Afinal, eu estava a desconversar. Não se esqueça Vª Ex.ª mas é da Legião Vermelha, Legião de Honra, Cruz de Guerra ou Cruz de Cristo lá para o Malta. Bem merece, o rapaz.
Que em boa verdade, este pedido não devia partir de mim, pobre diabo sem influências… Estavam lá na tourada tantos senhores finos. Até estavam jovens Professoras de Universidade; jornalistas de sangue azul e sangue às riscas; asas gloriosas de aviadores; próximos futuros certos deputados, tudo gente de bem e que se rebolou com o espectáculo que o Malta deu mai-lo da Triana.
Eles é que deviam falar, eles é que deviam pedir. Vª Exª a eles atendia-os e com certeza não vai escutar esta
Voz que Clama no deserto/Jaime Brasil
A Batalha, Suplemento Semanal Ilustrado, nº 99, 19/10/1925

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