24.9.10

Carta Aberta aos Portugueses e ao Dr. Moita Flores

Chamo-me Paulo Borges. Sou professor na Universidade de Lisboa e escritor.
Dirijo a revista *Cultura ENTRE Culturas*. Tenho dois filhos. Sou o primeiro
signatário da Petição "Pela abolição das touradas e de todos os espectáculos
com touros", que circula na net e em versão impressa. A petição, lançada
pelo Partido pelos Animais e pela Natureza (PAN), serviu de base à
constituição da plataforma "Basta de Touradas", que conta já com a adesão de
24 associações e entidades de defesa dos animais e com vários apoios de
figuras públicas, nacionais e internacionais.

O Dr. Moita Flores, figura pública e actual presidente da Câmara de
Santarém, lançou uma petição contra a nossa, redigida em termos que
considero deveras preocupantes, vindos de uma pessoa com a sua
responsabilidade cultural, cívica, social e política. Sei que se sente
ameaçado pelo movimento de defesa dos animais, mas isso não justifica tudo.

No texto da sua petição chama hipócritas, histéricos, angustiados, "talibãs"
e "horda de analfabetos" a todos os que são contra as touradas. Diz que
chegou à idade "onde já não há paciência para ser insultado", quando ninguém
o insultou. Pelos vistos chegou à idade onde só tem paciência para insultar
os seus concidadãos. Para insultar os milhões de portugueses que, por serem
contra o sofrimento dos animais e contra a degradação dos homens que se
divertem com isso, são considerados psicopatas, terroristas e incultos.

Fui amigo do Professor Agostinho da Silva, sou editor das suas obras e
presido à Associação com o seu nome. Aprendi com ele e com muitos outros -
desde São Francisco de Assis, Leonardo da Vinci e Antero de Quental a Gandhi
e ao XIV Dalai Lama - a defender a causa do bem de homens e animais e
recordo que Agostinho da Silva dizia haver dois tipos de "analfabetos": os
que não sabem ler e os que sabem, mas não conseguem entender o que lêem.
Creio que o Dr. Moita Flores se arrisca a ser suspeito de um terceiro caso,
ainda mais grave: não conseguir sequer entender o que escreve. Pergunto-lhe
quem dos opositores às touradas comete atentados bombistas ou pretende impor
as suas ideias pelo terror e pela violência. Pergunto-lhe porque é que ser
contra o sofrimento de touros e cavalos e contra a degradação dos homens que
com isso se divertem é ser "analfabeto". Sou autor de 22 livros (de poesia,
ensaio, ficção e teatro) e sou professor na Universidade de Lisboa há 22
anos: os portugueses ficam a saber, pela superior inteligência do Dr. Moita
Flores, que a dita Universidade contratou um "talibã" e um "analfabeto" que
anda a converter ao terrorismo e à incultura os milhares de alunos que o têm
tido como professor.

Não gosto de falar de mim, mas tenho de o fazer pela causa que defendo e
porque isto é gravíssimo, vindo de um criminologista, de uma figura pública
e de um supremo responsável político camarário. O Dr. Moita Flores insulta
desavergonhadamente a maioria da população portuguesa que, como o indica um
estudo recente (2007) do ISCTE, é contra as touradas. Segundo a brilhante
dedução deste senhor, Portugal tem assim, a par da crise económica, mais um
problema grave: a maioria da sua população é composta de desequilibrados
mentais, "talibãs" e "analfabetos".

A solução para este estado de coisas seria, segundo fica implícito no
espírito da sua petição, irmos todos curar-nos, reabilitar-nos e
cultivar-nos, com as nossas famílias, filhos e netos, para essas vanguardas
da alta cultura que são as praças de touros, onde se descobre o sentido da
vida e da existência, e se aprende a amar os animais e a natureza,
aplaudindo num êxtase de alegria o espectáculo da dor e do sangue.
Desprezemos as artes, as letras e as ciências, deixemos as escolas,
abandonemos as universidades, onde segundo Moita Flores ensinam "talibãs" e
"analfabetos", e vamos todos atingir a maioridade cívica, mental e cultural
a gritar "Olé!" nas touradas.

Agora sem ironia: o seu texto, Dr. Moita Flores, de uma retórica literária
completamente desprovida de coerência racional e apenas cheia de arrogância
e insultos a quem não pensa como o senhor, confrange pela desonestidade e/ou
confusão mental de que dá mostras. Pois não sabe o senhor que os defensores
dos animais são contra todas as formas do seu sofrimento, incluindo essas
que refere, e não apenas contra as touradas? Diz que se converteu ao
franciscanismo e que São Francisco de Assis lhe ensinou o "caminho ético e
moral" para educar os seus filhos e eu pergunto: já alguma vez leu as
biografias de São Francisco, onde por exemplo se diz que "Chamava irmãos a
todos os animais [...]" (Tomás de Celano, *Vida Segunda*, CXXIV, 165) e se
compadecia perante os sofrimentos que os homens lhes infligiam? E porque é
que o "touro bravo" é uma "fera negra, símbolo da morte e do medo"? Não
serão antes o toureiro e todos os aficionados que aplaudem o espectáculo da
dor que são temíveis e negros símbolos - embora muitas vezes inconscientes -
do pior que a humanidade traz em si? Fala do ritual trágico onde "vence a
vida ou vence a morte" e eu pergunto se a evolução dos costumes não nos
oferece outras formas, mais nobres, de fazer a catarse das paixões e vencer
o medo, sem fazer sofrer ninguém? Não há hoje formas superiores de heroísmo,
como dedicar-se às grandes causas de defesa dos homens, dos animais e da
natureza? Não é isso mais benéfico, útil e urgente do que a religião cruel
das touradas, anacrónica persistência dos arcaicos sacrifícios sangrentos? E
não é uma grosseira mistificação identificar os opositores das touradas com
a cultura urbana, quando há quem deteste touradas em todos os pontos do
país, incluindo no Ribatejo e no Alentejo? Para já não falar da sua patusca
ideia de que nós defendemos a "ditadura do 'hamburger' urbano" (!?...) e de
que é pelas touradas que se defendem os "Direitos do Homem", dos animais e
da "Terra"... Sinceramente, Dr. Moita Flores, o que há de lógico e sério
nisto? Defendem-se os animais criando-os para os torturar? O toiro bravo tem
de ser torturado numa arena para continuar a existir e com ele os montados?
Fala por fim da identidade nacional, da preservação da memória histórica de
Portugal: triste identidade e triste país que depende de manter tradições
eticamente inadmissíveis para subsistir! Pois eu digo-lhe: Portugal será
muito mais motivo de orgulho para os portugueses, e muito mais respeitado
internacionalmente, quando, após ser pioneiro na abolição da pena de morte,
abolir as touradas e todas as formas de sofrimento animal. Portugal não
desaparecerá, mas será um outro Portugal, que manterá na sua riquíssima
tradição e cultura tudo o que for ético, relegando para os museus do passado
a não repetir tudo o que hoje nos envergonha, como autos-de-fé,
esclavagismo, perseguições político-religiosas e touradas.

Esta carta dirige-se a si, mas sobretudo a todos os Portugueses. Leiam-se as
duas petições, o espírito, a argumentação e os objectivos de uma e outra, e
vejamos o que queremos de melhor para o país, para nós e para as futuras
gerações: aplaudir como cultura a tortura dos animais para divertimento dos
homens, com prejuízo da sua humanidade e sensibilidade ética, ou dar um
passo corajoso para abolir esta e todas as formas de fazer sofrer os
animais, nossos companheiros na aventura da existência, em prol do seu bem e
da nossa evolução pessoal e colectiva.

E vejamos quem queremos ter como representantes. É muito grave que num
Estado de direito as forças policiais não sejam capazes de ou não queiram
fazer cumprir a lei, como no recente caso da morte do touro em Monsaraz.
Como é muito grave que uma figura como o Dr. Moita Flores desrespeite e
insulte impunemente os seus concidadãos que, por imperativo de consciência,
não pensam como ele. Está na hora de dizer "Basta!": às touradas, a todas as
formas de infligir sofrimento a homens e animais e a uma geração de
políticos que coloca os seus duvidosos gostos pessoais, bem como os
interesses de grupos minoritários, acima da sensibilidade maioritária da
população. Está na hora de surgir uma nova geração, com um novo paradigma,
que traga a ética para a política e assuma numa mesma bandeira a defesa dos
homens, dos animais e da natureza.

Está na Hora! Basta!

Vamos assinar em massa:

*http://peticaopublica.com/PeticaoVer.aspx?pi=010BASTA*

Paulo Borges

Lisboa, 21 de Setembro de 2010

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.