28.11.10

E se o bichinho morrer?


por RAYMUNDO DE LIMA*

Ter um bichinho de estimação em casa é uma alegria, principalmente para as crianças e os solitários. Apesar dos médicos alertarem quanto a possíveis causas de alergias, asma, rinites e doenças do gênero, ter um bichinho em casa faz bem para a saúde mental dos humanos. Não sabemos, porém, se o mesmo ocorre com eles.

Um detalhe escapa aos apaixonados pelos animais: geralmente a vida do bichinho é mais curta que a humana, alguns sofrem pelos maus tratos e a falta de liberdade, portanto, é preciso estar prevenido sobre sua fuga ou perda definitiva.

A alegria momentânea em levar um pintinho para casa precisa estar ciente de que provavelmente ele não sobreviverá devido aos maus tratos, a solidão, falta de outros da espécie, ausência de quintal se vai viver em apartamento, etc. Em muitos casos, chega a ser crime previsto por lei maltratar o bicho mesmo sem intenção consciente.

Por sua vez, a criança imagina que o bichinho de casa é parte da família. Se pedirmos para a criança fazer um desenho, provavelmente demonstrará que o bichinho habita seu imaginário como se fosse gente, um membro normal da família.

Daí que a perda do bichinho – por morte ou fuga – normalmente é sentido com tristeza, luto, angústia ou culpa, podendo durar dias, meses ou anos. Adultos também sofrem quando perdem o seu bichinho de estimação. O escritor e acadêmico Carlos Heitor Cony não teve vergonha de expressar sua dor em crônicas, quando perdeu a cachorra Mila. No filme Madadayo, o velho professor cai em depressão depois que sua gata fugiu. Pensando que o fariam novamente feliz, os alunos trouxeram-lhe uma gata. Mas isso não acontece, porque sua gata Nora era muito especial. Ou seja, bicho ou gente nunca podem ser substituídos. Qualquer perda gera vazio existencial.

Que podem fazer os pais? Psicólogos e psicanalistas acham que: primeiro, devem levar a sério o sentimento de perda da criança. Jamais fazer pouco caso, dizendo “Era só um animal” ou “Podemos arrumar outro”. Agir com insensibilidade não ajuda a criança a elaborar o seu luto. Pelo contrário. “Não se realiza o luto do acontecido senão partindo o pão da palavra, que diz a dor da perda, observou psicanalista francês Philipe Julien (1993).

Todavia, se os sintomas de luto e tristeza depressiva durarem muito tempo, recomenda-se levar a criança a uma entrevista com um profissional da área psi. A melhor forma de enfrentar esses problemas é falando sobre eles, tomando consciência, por meio da palavra, do significado de quem foi embora, que fazer com o vazio de agora. “Eu contaria a meus filhos que há um bebê a caminho. Conversaríamos sobre que nome dar se for menino ou se for menina… Se pudéssemos falar da mesma maneira a respeito da morte, então penso que viveríamos de forma diferente” (citado por Schaefer, 1991; 153), compara a médica Elisabeth Kubler-Ross. [1]

Em segundo lugar, os pais devem respeitar o choro da criança; respeitar o tempo de sofrimento da perda que todos nós precisamos ter para reorganizar o sentido de existência. Tentar acabar a tristeza com broncas e rispidez só faz piorar as coisas.

Terceira sugestão: convidar a criança para fazer o enterro do bichinho. Estimulá-la a dizer palavras de despedida. Isso mesmo. Por que não homenagear um ser que nos foi muito importante para o desenvolvimento da criança, que lhe deu tantas alegrias e proporcionou tantas brincadeiras?

A perda de um bichinho – ou pessoa querida – exige tempo e cuidados especiais para ser superada. Também pode ser uma boa oportunidade para esclarecimento de questões fundamentais sobre o significado da vida – de “minha vida” enquanto representação “minha”, como diz Schopenhauer - bem como abre caminho para uma conversa interessante sobre os tradicionais temais de filosofia, sobretudo a ética e as virtudes, a relação alma e corpo, o papel da religião, o valor da vida etc.

Contraditoriamente à crença popular, a maioria das crianças e adolescentes quer falar sobre a morte. Os pais precisam superar sua dificuldade e resistência para conversar assuntos considerados tabus, como a: morte, sexualidade, paixões, drogas etc. Apesar da morte ser um assunto tão banalizado na mídia, ela ainda se constitui um tabu. Entretanto, a nova geração acostumada à televisão, aos videogames, os filmes violentos e os noticiários sobre o chamado mundo cão, têm um olhar diferente sobre a morte e o morrer. Ou seja, “a morte está para ser contemplada como espetáculo que vem saciar os instintos de violência”, observa Libâneo (1984: 83). Podemos dizer que, por um lado, a morte e o morrer tornaram-se banalizados, e por outro, ela continua sendo um tabu [2] nas conversas ou na disposição para se pensar sobre o impensável – pois nosso inconsciente não tem representação, tal como entendia Freud.

A verdade é que amadurecemos psicologicamente quando encaramos o sofrimento, a dor, a morte ou o vazio existencial sinalizando “nunca mais…”. Em que pese o fato da morte ser sempre um acontecimento inesperado da vida, cada caso requer uma explicação especial, não importa se fantasiosa ou cientificista. O acontecimento “morte” sempre nos convida – sujeito e coletividade [3] – a procedermos uma reorganização radical de toda nossa estrutura psíquica e de nosso sentido filosófico-existencial.

Enfim, “uma sociedade onde não exista o estímulo a pensar no sofrimento necessariamente produzirá indivíduos frágeis”, diz o filósofo P. Sloterdijk. Assim como fazemos exercícios físicos para sermos sadios, também devemos conversar, filosofar sobre os momentos difíceis da vida, a fim de estarmos melhor preparados para enfrentar tais dificuldades.

Referências bibliográficas.

JULIEN, P. O retorno a Freud e Jacques Lacan. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

KOVÁCS, M. L. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992.

KÜBER-ROSS, E. Sobre a morte e morrer. São Paulo: M. Fontes, 1991.

LIBÂNIO, J. B. Conceito cristão da morte. In: Morte e suicídio: uma abordagem multidisciplinar (vários). Petrópolis: Vozes, 1984: 71-88.

LIMA , R. Falando de morte sem meias palavras. Entrevista a rev. Crescer – Ed. Globo, ano 6, n. 71, out/99, p. 86-7.

RODRIGUES, J. C. Tabu da morte. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983.

SCHAEFER, C. Conversando com crianças sobre… São Paulo: Harba, 1991.

SLOTERDIJK vê o homem como um ser trágico. O Estado de S. Paulo, 27/jan/1996.

TORRES, W. C. Educação para a morte. In: Morte e suicídio: uma abordagem multidisciplinar (vários). Petrópolis: Vozes, 1984: 120-26.


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* RAYMUNDO DE LIMA é Psicanalista, Professor do Departamento de Fundamentos da Educação (UEM) e Doutor em Educação (USP). Publicado na REA nº 30, novembro de 2003, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/030/30elima.htm

[1] O sentimento de luto – tristeza profunda – que uma pessoa experimenta com a perda de um bicho de estimação é idêntica, em quantidade e intensidade, que a sentida por perda de uma pessoa querida. Principalmente para a criança que desenvolveu uma forte ligação emocional com o animal. Os estágios de luto são os mesmos de uma perda humana. Primeiro vem o choque e a insensibilidade, e durante esse período a criança têm dificuldade em aceitar a realidade da morte do bicho. O segundo estágio envolve sentimentos de tristeza, revolta e infelicidade. É possível que nesse período a criança desenvolva raiva para com aqueles que não salvaram ou não cuidaram adequadamente o animal, inclusive ela pode sofrer sentimento de culpa. O ultimo estágio é de aceitação da perda definitiva. É quanto à criança começa a formular um pensamento resolutivo sobre a sua relação com o animal. Ou quanto manifesta o desejo de ter outro bicho. Varia muito de uma criança para outra o tempo e como é superado cada estágio. Se a ligação criança/ bicho de estimação era realmente significativa, representando muito para o mundo subjetivo da criança, durarão meses e até um ano, do contrário, é uma questão a ser resolvida em semanas. Mas, deve sempre ser objeto de atenção dos pais, pois o luto considerado crônico – luto complicado – pode ser uma depressão ou melancolia que demanda tratamento psicológico. [SCHAEFER, C. 1991; KÜBER-ROSS, E. 1991).

[2] Ver RODRIGUES, J.C., 1983.

[3] Existem sociólogos que estabelecem ligação entre o aumento das cifras de violência social no mundo contemporâneo e a ausência de debate tanático (TORRES: 123).

Fonte: http://espacoacademico.wordpress.com/2010/11/27/e-se-o-bichinho-morrer/

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